24.11.15

Mulher, nova presença na sociedade e na igreja

João Batista Libanio, sj –  teólogo  e escritor

Há profundo desequilíbrio entre as realizações reais da mulher na sociedade e sua posição no imaginário social. Desde sempre, a mulher cumpriu papel fundamental na formação da cultura. Posto tenha sido presença de modo bem diferente da do homem, não deixou de ser relevante. No nosso século, S. Freud desvendou parte da trama misteriosa que preside o configurar-se da personalidade humana. E, nesses estudos, a relação filho-mãe assume papel singular. A mulher detém enorme influência na estruturação da psique das pessoas.
Apenas nos damos conta das marcas da mulher-mãe em cada um de nós. Como tais ranhuras permanecem, em muitos casos, relegadas ao nível inconsciente ou simplesmente são percebidas no doloroso e sigiloso processo psicanalítico, o alcance social do papel materno quase não se visibiliza.
Esse mundo de influências pertence à socialização primária, que se constitui mais de cargas emotivas, densidades afetivas, linguagens não verbalizadas, enquanto o imaginário social falado e explicitado cai sob as análises dos sociólogos e este vem marcado, sobretudo, pelo homem.
Hoje, porém, já se tornou saber-comum a função insubstituível e profunda da mãe. Evidentemente vale para as mulheres-mães. Número já significativo. Ao tomar consciência do seu peso social pelas vias internalizantes dos laços afetivos, abre-se a toda mulher-mãe a chance para assumir com lucidez e competência tal presença decisiva na constituição mesma das pessoas.
O projeto feminista pretende mais. Reflexão dessa natureza reduziria a mulher unicamente à função no mundo da reprodução. Ela assume cada vez mais lugar no mundo da produção, da cidadania cívica, política, social e eclesial. O movimento feminista ajuda a mulher a fazer valer a totalidade de sua personalidade que vai muito além do espaço doméstico. Pesava-lhe a terrível pecha de “sexo frágil”, forjada no inconsciente escuro e escuso de patriarcalismo inseguro, afastando-a das lides sociais eeclesiais.
O primeiro momento do despertar da mulher para a autonomia se deu na busca e exercício da paridade sexual. Derrota-se assim preconceito ancestral, apoiado na desastrosa biologia aristotélica que reinou durante séculos, em que cabia à mulher, no ato generativo, a passividade absoluta. Por cima, veio a gramática que criou os plurais masculinos, recalcando os femininos. Vigorou durante longo tempo o esquema social de toda mulher se esconder atrás de alguma muralha: a do convento, a do marido ou a do pai, como eterna menor de idade. Rompem-se novos horizontes de esperança e de missão para a mulher consciente e livre nos espaços conquistados.
A missão da mulher cresce à medida que ela se sobrepõe aos empecilhos que durante séculos lhe foram colocados. A batalha da paridade sexual parece já ganha, em tese. Ninguém ousa teoricamente contestá-la. No entanto, a inércia dos fatos pesa sobremaneira que nos surpreendem comportamentos de homens e de mulheres ainda impregnados da antiga mentalidade machista. Assim, em atividades eclesiais ou na missão, reluta-se em partilhar com elas tarefas iguais.
A luta das mulheres prossegue. Avança para o campo da Igreja, da política, da profissão, onde disputam os mesmos espaços com dignidade e competência. Enfrentam milênios de discriminação em busca de nova mentalidade de igualdade de direitos. Mais que ocupar lugares materialmente, o movimento feminista ambiciona produzir verdadeira revolução cultural no âmbito da compreensão da mulher, do seu papel na sociedade, na família, na Igreja, na relação com o homem. Nem inferioridade, nem mesmo simples complementariedade. A mulher e o homem existem como totalidades ricas, abertas a outras totalidades. Não necessitam propriamente complementar-se, mas enriquecem-se, como toda realidade humana, diante de outras totalidades.
O feminismo é, portanto, questão cultural e, diria mesmo, teológica. Não bastam simples mudanças de legislação, embora necessárias. O próprio imaginário social e religioso, que o ocidente machista plasmou, precisa recriar-se em profundidade em outra perspectiva.
Ser homem e ser mulher contém elementos ideológicos que deturpam a visão cultural e de fé. Estes configuram o imaginário social e precisam passar pelo crivo da crítica. Tal processo inicia-se na família, onde o menininho e a menininha aprendem, por primeiro, os papéis sociais e comportamentos religiosos. Introjetam-nos pela via da socialização primária. A escola, as igrejas, a mídia, como socializadoras importantes da sociedade atual, influenciam muito na criação de nova maneira cultural de entender o ser mulher, seu papel e suas relações na sociedade.
Nesse processo, o Cristianismo, apesar de ter herdado forte corte machista do judaísmo e ter pagado tributo pesado à concepção biológica antiga de mulher, conservou dentro de si gérmens fecundos de revolução cultural feminista. Basta recordar dois dados: a relação de Jesus com as mulheres e algumas afirmações de São Paulo. Jesus escolheu entre elas discípulas fiéis e fê-las as primeiras anunciadoras da Ressurreição. São Paulo, apesar de passagens carregadas do machismo cultural de seu tempo, em momento de profunda percepção da mensagem do Evangelho, proclama a igualdade fundamental do homem e da mulher em Cristo (Gl 3,28). Fonte inspiradora para libertações que tardaram muito, mas que agora eclodem.
Fonte: Revista Jesuítas Brasil

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